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sábado, novembro 01, 2003


Resposta a uma recensão crítica da Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa



No primeiro número da "Revista de Filoloxía Asturiana", 2001, pp. 232-240, o Professor Fernando Alvarez-Balbuena Garcia dedica uma recensão crítica à Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa, Miranda do Douro / Lisboa, 1999. Ela pode vir a marcar, finalmente, o verdadeiro início de um diálogo científico que já tinha sido timidamente esboçado em 1995, após a publicação da Proposta de Convenção Ortográfica Mirandesa. Esta crítica é extremamente útil, na medida em que vem alertar para a necessidade de uma segunda edição da Convenção. De facto, a intensa prática de escrita que foi despoletada pela Convenção a partir de 2000 pôs em evidência problemas que até então nunca se haviam colocado (adaptação de empréstimos, hesitações entre via etimológica e via fonético-fonológica, utilização de lh- e l-, anotação dos processos de alteração vocálica em sílaba pretónica, conflitos inter-dialectais, etc.). Todos estes problemas foram criadores de novas variações e, na minha opinião, exigem ser revistos no seu conjunto, não no sentido de introduzir alterações nas decisões gráficas fundamentais - o que me parece prematuro - mas no sentido de a corrigir, melhorar e ampliar.

Os aspectos focados pelo Professor Alvarez-Balbuena são de diferentes tipos, agrupados em três grandes grupos: I - "Erros técnicos" (de teor linguístico); II - Soluções normativas consideradas criticáveis; III - Questões de planificação linguística.

Sigo a ordem pela qual foram sendo apresentados.

I- "Erros técnicos"

1) Extensão da palatalização de l- inicial em asturo-leonês (p. 233, I).

Sobre o caso de lh- inicial, diz-se na p. 21 da Convenção: "Esta característica do mirandês é comum ao leonês e ao asturiano ocidental". Tal como aponta o Professor Alvarez-Balbuena, em lugar desta frase deveria estar "A palatalização de l- inicial latino é comum à maior parte das falas asturo-leonesas".

2) As funções do hífen e o caso de "guarda-rius" (p. 233-234).

O Professor Alvarez-Balbuena não concorda com a utilização do hífen na palavra "guarda-rius" pois lhe é difícil crer que ela obedeça à condição indicada na p. 28 da Convenção, isto é, que os seus elementos mantenham a sua acentuação própria.

Respondendo: Existe em mirandês uma estreita relação entre a qualidade das vogais e a sua acentuação. Basta talvez dizer que, quer em sílaba átona no corpo da palavra, quer num contexto frásico de secundarização acentual, os ditongos "ie" e "ue" se reduzem. Assim, diz-se "bou a la fuonte", mas, na frase "bou a la fuonte nuoba", a sequência "fuonte nuoba" pronuncia-se como "funte nuoba". No entanto, continua a escrever-se "fuonte nuoba", dado que na fala corrente as duas palavras não constituem uma unidade sintagmática com sentido específico. No caso de "guarda-rius", estamos perante um vocábulo mórfico com sentido próprio, onde a separação por hífen, além de corresponder à existência de acento no primeiro elemento (naturalmente, secundarizado), tem a vantagem de manter a transparência da composição da palavra. E, por fim, o caso do hífen insere-se no conjunto daqueles em que se preferiu optar para o mirandês regras de escrita coincidentes com as do português em vez de inventar regras novas ou de importar regras completamente alheias ao sistema em vigor em Portugal. Há que ter em conta que o mirandês está completamente inserido num ambiente político e sócio-cultural português, que os mirandeses são bilingues e que do lado espanhol vizinho a única norma relativamente conhecida em Miranda é a castelhana. (Este assunto - sem dúvida, o mais polémico - será retomado mais adiante).

Por todos estes motivos, considero que o "erro do guarda-rius" apontado pelo Professor Alvarez-Balbuena não é um erro, mas que a formulação da regra apresentada na Convenção deveria explicitar que se aplica apenas a vocábulos com sentido próprio e cristalizados na língua.

3) Artigo vs. pronome demonstrativo (p. 234).

A Convenção Ortográfica começa por considerar os elementos "l, ls" como artigos definidos masculinos. Mais adiante, na tabela de pronomes demonstrativos, incluem-se entre os demonstrativos masculinos "lo, l / los, ls"; e entre os demonstrativos neutros, "l". Para esta categoria pronominal são dados os seguintes exemplos:

(a) A eilhes amporta-le pouco lo / l que fagas; (b) Lo / L que bou a pedir-te ye un fabor; (c) La que tu conheces nun ye Marie; (d) Lo / L que tu conheces nun ye Joquin.

Com base nestes exemplos, o Professor Alvarez-Balbuena aponta três erros.

1- O facto de "lo, los" não estarem incluídos entre os artigos masculinos mirandeses.

O caso não passou despercebido: além de "l, ls", em algumas localidades raianas aparecem "lo, los" como artigos, estando mais atestada a presença do plural que do singular. De tal forma que já José Leite de Vasconcelos (Philologia Mirandesa, I, 360), considerava "los" como uma variante dialectal do artigo masculino plural. Numa convenção mais abrangente, que se proponha dar conta da variação dialectal existente, deveria pois ser mencionada a existência de "lo, los" como artigos masculinos.

2- O facto de, em todos os exemplos a), b), c) e d), "lo/l, la" serem considerados pronomes demonstrativos, quando deveriam ser considerados artigos. Segundo o Professor Alvarez-Balbuena, trata-se de "casos d'artículo en funcion de trespositor a categoria substantiva".

Para além da ambivalência original de artigo e demonstrativo, a análise que nós, os autores da Convençam, fizemos enquadra-se na tradição gramatical portuguesa, que é diferente da análise feita por gramáticas de Espanha. Para as gramáticas portuguesas clássicas, o elemento "a, o, as, os" é demonstrativo "a) quando vem determinado por uma oração ou, mais raramente, por uma expressão adjectiva, e tem o significado de aquele(s), aquela(s), aquilo" (como em "O homem que ri, liberta-se. O que faz rir, esconde-se", "Ingrata para os da terra,/ boa para os que não são", "Era terrível o que se passava") e, ainda, "quando, no singular masculino, equivale a isto, isso, aquilo, e exerce as funções de objecto directo ou de predicativo, referindo-se a um substantivo, a um adjectivo, ao sentido geral de uma frase ou de um termo dela" (como em "ser feliz é o que importa, não importa como o ser!)" (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Ed. João Sá da Costa, 1984, p. 340). Também gramáticas de orientação mais moderna (entre as quais a Gramática da Língua Portuguesa de Maria Helena Mira Mateus et alii, 2-a ed., Lisboa, Caminho, 1989) analisam os mesmos elementos como deícticos/ pronomes demonstrativos. Porem, as gramáticas espanholas qualificam este mesmo elemento (com as formas morfológicas respectivas) como artigo. Estas interpretações têm feito parte, até muito recentemente, dos axiomas da linguística de cada um dos países. Em Portugal, Ana Maria B. Brito chamou a atenção para o assunto (em A sintaxe das orações relativas em português, Porto, INIC, 1991, p. 245, nota 21) concluindo que, em qualquer caso, se trata de determinantes. Este caso mostra que uma eventual reedição da Convenção Ortográfica deveria ultrapassar tais divergências de interpretação, adoptando classificações mais genéricas e consensuais.

3- O facto de o paradigma dos artigos mirandeses não incluir a categoria de neutro.

Retomando a citação do Professor Alvarez-Balbuena, nos exemplos a) e b) estaríamos perante um artigo neutro.

Que nestes casos se trate de um neutro é um facto que não levanta grandes dúvidas. "L" é, nesse contexto, tão neutro como o seriam "isso" ou "aqueilho". Mais uma vez segundo as gramáticas tradicionais portuguesas, o único resquício de neutro que o português conserva encontra-se, precisamente, entre os demonstrativos - e esta observação seria extensível ao mirandês. Por conseguinte, a existência ou não existência da categoria de "artigo neutro" em mirandês é mais um assunto em aberto, que exige uma demonstração sintáctica. Eis aqui um bom tema de estudo.


4 - Continuando a admitir a classificação de "demonstrativo neutro", verifica-se porém que a tabela de pronomes demonstrativos da p. 33 da Convenção contém uma falha. Considerando os exemplos a) e b) (atrás apresentados) como correctos, então, na última caixa da tabela, em vez de "aquilho, l, aqueilho", deve aparecer "aquilho, l/ lo, aqueilho".

4) - Verbos regulares entre os irregulares (p. 234)

Citando: "Na parte qu'ilustra les conjugaciones de los verbos irregulares incluyense verbos qu'en mirandês presenten paradigmas plenamente regulares, como son chubir (pax. 46) y oubir (pax. 53), y que, en consecuencia, nun tendrien que parecer equi".

Trata-se, de facto, de um erro de desatenção, que devera ser corrigido.

5) Enquadramento dos numerais (p. 235)

Citando novamente: "la inclusión de los numberales cardinales había facese nel partaz dedicáu a los paradigmas morfolóxicos, co los demas cuantificadores, y non na amuesa léxica del final de la obra (pax. 61)".

Não tendo sido incluída a categoria de "quantificadores", tal como não o foram as de "determinantes", "especificadores", "deícticos", etc., não me parece errada a nossa opção. De qualquer modo, numa futura edição em que aparecessem também os ordinais, seria recomendável que se fizesse outro enquadramento.

II - Soluções normativas consideradas criticáveis:

a) Critérios para a escrita j (p. 235).

De acordo com as palavras do Professor Alvarez-Balbuena, não é claro o critério seguido em palavras que se escrevem com "j" ou com "ge", "gi".

A Convenção aconselha a que (nos casos em que a pronúncia é igual à do português) se respeite a etimologia, o que equivale a dizer que nas palavras que também pertencem ao português se deveria seguir o seu modelo. A palavra "registar" escreve-se com "g" porque a sua base etimológica o recomenda e é também assim que se escreve em português. Quanto a "quaije" e "rejistir" em vez de "quaise" e "resistir"... a razão dessa escrita está no facto de corresponder a uma pronúncia generalizada em terras de Miranda. Considerámos sempre este aspecto um factor decisivo quando tivemos de escolher entre o critério etimológico estrito e o fonológico.

Como se pode observar, a questão das fricativas mirandesas não foi plenamente explicitada na Convenção Ortográfica e nem sequer foi tratado o problema da adaptação dos numerosos empréstimos que o mirandês recebe. Numa tentativa de sistematizar minimamente alguns casos, foi elaborada uma Proposta de Adenda 2 (relativa a empréstimos de palavras com "x ") que tem um certo interesse para o caso aqui tratado. Essa proposta está publicada neste mesmo site, no sector Projecto 1, onde se pode ler uma pequena observação sobre o caso que o Sr. Professor refere.


b) O Professor Alvarez-Balbuena faz notar (p. 235) que o uso de "ç" e de "z" "nel marxe postnuclear de la silaba" marca uma ruptura nos critérios fonológicos e /ou etimológicos de outras soluções propostas na Convenção. Tem o Senhor Professor toda a razão. Porém, perante o arcaísmo do sistema de sibilantes mirandês, considerámos que, neste caso, deixar a escrita guiar-se pela regras da pronúncia permitia, por um lado, tornar clara a passagem do nível fonológico ao nível fonético e, por outro, evidenciar as transformações que a história da língua impôs (e que, sendo diferentes daquelas que o português normativo apresenta, não seriam imediatamente dedutíveis por outros portugueses se se tivessem seguido os critérios apontados pelo Professor). A solução tomada mostrou-se viável, pois "funcionava". E funcionava por diversas razões. A principal está no próprio inventário fonológico da língua, que contém fricativas surdas e sonoras. Outra está no facto de esse modo de escrever corresponder, precisamente, à pronúncia mirandesa: se "ç" [s], não pode pronunciar-se, em determinado contexto, senão como [z], porque não grafar, precisamente, "z" ? (Note-se que o correspondente sonoro de "ç" é mesmo [z], com o valor que tem no IPA). Assim, sendo esse o modo como as pessoas realizam regularmente as suas palavras patrimoniais, e havendo sinais gráficos que correspondem perfeitamente a essa pronúncia, será mais fácil e imediato confiar nela do que escrever uma coisa para ler outra. Outra razão para escrever "ç" e "z" em fim de silaba e "b" em lugar de "v" tem um carácter sociolinguístico. Há que ter em conta que o mirandês não tem uma tradição de escrita tão antiga e continuada como outras línguas ibéricas; não teve ortografistas nos séculos XV e XVI imbuídos de um espírito classicizante; não tem documentos escritos da sua existência arcaica nem um corpus antigo em que se apoiar - exceptuando algumas palavras que aparecem num ou noutro documento leonês; e, como é bem sabido, apenas no fim do século XIX alguém tentou transcrever o que então se ouvia nas aldeias de Miranda. Assim, é a própria fala viva, preservada no meio rural camponês, que constitui ainda hoje o melhor repositório de testemunhos sobre a história da língua. A tentativa de encontrar regras fonético-fonológicas comuns a todas as variedades pareceu-nos, por si só, constituir um avanço em relação ao que anteriormente se sabia sobre o funcionamento da língua.

c) A confusão que provoca a grafia "cinquenta" (p. 236).

Os mirandeses são portugueses e aprendem a escrever em português. 50 pronuncia-se em mirandês, tradicionalmente, como em português. Logo, a Convenção recomenda que se escreva como em português. Seria mais lógico que em ambas as línguas se escrevesse "cincoenta". Mas, escrevendo-se em português "cinquenta", se se adoptasse uma escrita diferente para o mirandês isso iria provocar desnecessários erros gráficos numa ou noutra língua.

d) Grafia de "ua" (p. 236). Proposta do Professor Alvarez-Balbuena: a sua substituição por "un-a".

A escrita desta palavra foi, de todas, a que demorou mais tempo a resolver. Como o Senhor Professor faz notar, a realização de uma consoante nasal velar entre "u" e "a" nem é geral em mirandês nem é representável com letras normais. A solução "u" encimado por til (~) e seguido de "a" pareceu-nos viável. Porem um "u" com til é difícil de conseguir e de transmitir por via informática. Experimentaram-se várias soluções alternativas: un-ha, un-a, un'a, unga, u~a, um-a... e todas elas foram recusadas por um ou vários elementos da equipa, com base em argumentação caso a caso.

III - Questões de "planificação linguística".

e) Pergunta o Sr. Professor Alvarez-Balbuena (p. 237): - Sendo a Convenção Ortográfica um trabalho de planificação linguística, porque não está escrita em mirandês? Acrescentando: "Ye porque esta Convençao ta tan dirixida a Miranda como al restu de Portugal, o ye porque la subordinación diglósica del mirandés al portugués sigue presente mesmamente ente los beneméritos miembros del equipu autor de la Convenção, qu'escuyen la qu'en Miranda ye la llingua A (el portugués) pa presentar, formalmente, una propuesta d'ortografia mirandesa?"

A principal razão está no simples facto de que a Proposta de Convenção Ortográfica Mirandesa, de 1995, foi o primeiro tentame de unificação da escrita que surgiu na história da língua mirandesa.

Nesse momento, já não se tratava bem da habitual situação diglóssica definitória das línguas minoritárias, mas de uma fase terminal, um quase colapso, provocado pelo desaparecimento acelerado da população camponesa que preservou a língua durante séculos. Este idioma dispunha, em 1995, de um único professor da língua numa única cadeira de opção numa única escola; de um único grande historiador; de um único especialista em literatura oral; e de um ou outro estudioso de aspectos vários da cultura mirandesa. Foi com essas pessoas que se fez a Convençam. Devido às circunstâncias de voluntariado em que se trabalhou e à leveza organizativa do projecto, todo o grupo era português, sendo o português a única língua em que qualquer um dos participantes podia escrever livremente, sem constantes hesitações ou receios de errar.

Perante este panorama, é fácil de compreender que entre 1995 /1999 não houvesse ainda gente preparada e disponível para escrever, em mirandês, um documento onde se instituíam as primeiras regras de...escrever em mirandês! Basta dizer que todos os termos linguísticos a utilizar seriam empréstimos totalmente novos. Incorporá-los, na escrita, significava estar a resolver problemas que ultrapassavam em muito o âmbito possível de uma primeira convenção, destinada essencialmente ao registo de palavras patrimoniais. Dever-se-ia escrever Ortográfica? Ou Ourtografica? E Pronome Objecto Indirecto passaria ou não a ser Pernome Oujeto Andereto? Se tivesse sido possível, nessa altura, tudo escrever em mirandês, teria sido feita, sem qualquer dúvida, uma edição bilingue.

f) "El caso ye que la influencia de la ortografía portuguesa sobre les normes de la Convenção ye mui vultable" (p. 237).

A chamada "influência portuguesa" tem sido constantemente alvo das críticas de linguistas estrangeiros - mesmo de alguns cuja língua tem seguido as normas gráficas da sua propria língua-tecto. Ao longo deste texto tenho vindo a assumir, como explicaçao das coincidências e das divergências de escritas entre o mirandês e o português, o facto de existirem semelhanças e diferenças fonético-fonologicas entre as duas linguas que se pretendeu pôr em relevo. Porém existem também outros motivos. Deve-se mencionar, por exemplo, que alguns pais proibiam, e ainda proíbem, a inscriçao dos seus filhos nas aulas de mirandês por considerarem que a aprendizagem da escrita mirandesa prejudica a aprendizagem do português. Este motivo, de ordem puramente social, pareceu-nos tão forte que não podia ser ignorado, sob pena de se condenar, à partida, a transmissão da língua através do ensino. Assim, subjacentes a toda a Convençao estavam os seguinte princípios metodológicos: tudo o que fosse patrimonial e semelhante ao português se escreveria como em português; para tudo o que fosse diferente seriam encontradas soluções, por tipos de casos e não palavra a palavra, que correspondessem a critérios genéricos pre-definidos (e que são explicitados na própria Convenção).

Vejamos pois a esta luz as opçoes que o Professor Alvarez-Balbuena considera discutíveis - e que, certamente, o são, como todas as demais:

- Grafia "o" para representar a vocal átona final [u] (p. 237).

Em português, -o átono final lê-se [u]. Trata-se também de uma tradiçao da escrita mirandesa, desde José Leite de Vasconcelos, no fim do século XIX. Não existem em mirandês palavras cujo teor se traduza por uma oposiçao -o/-u precedido de consoante (como acontece em asturiano com as palavras "contáveis" vs. "não contáveis").

Além disso, em português, as palavras oxítonas que terminam em "u" nao levam acento gráfico. Assim, as palavras "peru, luzencu, tabu", dispensam o acento gráfico, sendo oralmente acentuadas na última sílaba. Em resultado deste hábito de leitura, quando um locutor português tem de ler em voz alta, por exemplo, os nomes romenos em "-escu" ("Popescu, Ceausescu") coloca o acento tónico na última silaba, o que torna os respectivos nomes... um tanto ridículos. O mesmo aconteceria com as palavras mirandesas se acabassem em "-u", ao serem lidas por qualquer outro português.

- "escoyeta de los digrafos y (...)" (p. 237):

Como disse atrás, trata-se de uma tradiçao portuguesa antiquíssima. Também ela existe em mirandês ininterruptamente desde José Leite de Vasconcelos. A tradição não é muito antiga mas tem um certo peso.

- "inexistencia - o existencia testemuñal - del grafema (norma de xustificación fonolóxica, non etimolóxica, ditada por oposición al portugués - y polo tanto indirectamente determinadas por esta llingua (...)" (p 237).

Aqui, fiquei um pouco perplexa: mesmo quando não tivemos em conta a norma portuguesa estávamos a obedecer-lhe?! Neste ponto, há uma clara diferença do uso mirandês em relação à pronúncia portuguesa padrão; é justo que a grafia seja diferente. Aliás, o Professor Avarez-Balbuena, como afirma na alinea b), não é contra as normas de justificaçao fonológica. Porque razão há-de ser contra esta? Se há línguas que adoptam "x" em vez de "j" ou "ge", porque não escrever "b" em vez de "v", se o [v] não existe no inventário fonológico da língua? Se o modelo português fosse imposto, teríamos que os mirandeses, embora dizendo "lhibro" e "Febreiro", seriam induzidos a escrever "lhivro" e "Fevreiro" (dado que em português se escreve "livro" e "Fevereiro").

- "uso del guión colos pronomes átonos enclíticos al verbo y nes secuencias pronominales" (p. 237).

Estamos mais uma vez perante um assunto em que nos sentimos "gauleses irredutíveis". A transparência morfológica parece-me ser, neste caso, ainda mais necessária que no das palavras compostas.

- "sistema d'acentuación inspiráu nes normes portugueses" (p. 237).

Há, certamente, casos em que a acentuação de tipo espanhol seria mais clara e fácil - por exemplo, o da acentuação de palavras terminadas em "n". No entanto, as pessoas que agora escrevem e lêem mirandês já se habituaram ao modo convencionado.

- "etc., etc." - (p. 237).

Esta repetição do "etc.", que o expande indefinidamente, revela até que ponto as propostas contidas na Convenção mirandesa desagradam ao Senhor Professor Alvarez-Balbuena. As razões desse desagrado são expostas na sua recensão:

"Ún de los problemas que plantia esta bipolaridá de llingües normatives ye considerar si'l nuestru dominiu llingüistico (pequeñu n'extensión territorial, modesto en númberu de falantes y sometiu a un grave processu de substitución llingüistica) puede dase'l luxu de char a andar dos modelos llingüisticos normativos (...)" (p. 238, 3-o parágrafo)

Pois precisamente por o mirandês ser uma língua pequena em extensão territorial, número de falantes, capacidade de afirmação e sobretudo, submetida a grave processo de substuição linguística, é que pode dar-se ao luxo de não se diluir em qualquer nova norma que lhe seja estranha; pelo contrário, é essa situaçao precária que lhe dá o direito de afirmar a sua individualidade, já de si tão ameaçada. Se tivesse havido maiores contactos, maior conhecimento mútuo, entre mirandeses, leoneses e asturianos; se todo o processo tivesse sido o resultado de uma planificação conjunta, inter-universitária, em vez de se apresentar como o ponto de arranque possível, uma base de trabalho sine qua non, entao teria sido possível estabelecer bons entendimentos, após longas discussões e após muitas e agradabilíssimas visitas mútuas.

Porém, o que está a acontecer, neste momento, não é de molde a favorecer, no imediato, uma remodelação da escrita. No início do ano 2000, a fim de unificar ainda mais a grafia, tornando-a aceitável para os escritores sendineses[1], foi criada uma Adenda que eliminava o acento circunflexo dos ditongos iê e uô - o que até aproxima um pouco mais a escrita mirandesa da escrita asturo-leonesa. Pois bem: hoje, há uns que escrevem -ie e -uo com acento e outros que o eliminam; há os que aceitam, para o sendinês, as normas da Convenção; e há quem continue a achar que a variedade sendinesa não deve seguir as normas mirandesas. Nos jornais de Trás-os-Montes são publicados artigos em tom aceso que reflectem estas polémicas. Ora o mirandês já tem duas línguas de maior prestígio a invadi-lo e a calá-lo: o português em todas as suas instituições e o espanhol no comércio. Suportaria o mirandês ainda outra "norma tecto", num momento crucial, em que nem sequer consegue unificar a escrita de meia centena de pessoas (pois, neste momento, não haverá mais de cinquenta que pratiquem a escrita)? Estou convencida de que o tempo resolverá o caso, quer os mirandeses escrevam todos do mesmo modo quer tenham alguma variação, mutuamente compreensível. Será a existência de duas normas diferentes - asturiana e mirandesa - o que levará a, ou contribuirá para, o progressivo desaparecimento do mirandês? Não creio, pois não é essa a causa de o mirandês ir deixando de se falar. A principal razão está no facto, incontestável, de que os camponeses que o sustentaram durante séculos estão em vias de desaparecimento. Hoje, os filhos e netos desses camponeses já não são analfabetos. Lêem e escrevem. Escrevem português, falam português e espanhol, conhecem cada vez melhor o inglês e já há domínios (o científico, precisamente) em que o inglês ultrapassou a língua nacional. Latim, raríssimos são os que o sabem. Nestas circunstâncias, os jovens mirandeses redescobrem a velha língua dos seus maiores como um exotismo, uma raridade preciosa, um sonho de identidade reencontrada. De facto, um privilégio, exclusivo de pessoas que usufruem de duas línguas desde a nascença e que vivem num meio atento à importância dos valores locais. Trata-se de um património que o país respeita, como o prova a aprovação por unanimidade que obteve no Parlamento a proposta de lei para o seu reconhecimento. O que penso é que, tratando-se de uma língua seriamente ameaçada (tal como alguns milhares de línguas mais), agora, o que é urgente é que fale mais (mas como fala), que cante mais (mas como canta) e também que escreva mais (como começou a escrever) - a fim de assegurar uma boa, sólida e perdurável documentação da sua existência. Este objectivo está sendo atingido em cada dia que passa, com produções literárias de uma beleza admirável. Que continue pois, parecida com o que foi, e que seja o que é, o mais possível.

Afirma ainda o Professor Alvarez-Balbuena (p. 238, 2-o paragrafo) que ambos os modelos de língua normativa [o asturiano e o mirandês] "ñacen cola voluntá de constituyi-se en llingua estándar". Se entendermos língua standard como "una variada llingüistica modélica, de referencia comun, socialmente non marcada, qu'una comunidá de falantes emplega nos ámbitos formales, cultos y supradialectales", devo dizer que convém distinguir entre a constituição de uma norma escrita e a promoção de um modo ortofónico específico. Em nenhum parágrafo, nem em qualquer nota da Convenção mirandesa aparecem indicações sobre um modo de falar (idealmente) não marcado, que seja mais recomendável que outro. Parte-se, sim, da variação existente, mas com o intuito de que, numa escrita comum, convencional (ou seja, de contrato social formalizado), cada aldeia possa "ler" o seu modo específico de falar. Segundo a minha opinião, deve-se tentar unificar internamente a escrita, porém nem a escola, nem as gramáticas, deveriam exercer qualquer pressão no sentido de impor um modo de falar uniforme. Deveriam, sim, chamar a atenção para a variação existente, explicando os seus fundamentos. Para mim, isto é evidente, não apenas no que concerne o mirandês, mas todas as variedades locais de não importa que língua.

Porque o que une as pessoas são as suas marcas de identidade, que se vão alargando em círculos, acompanhando os círculos concêntricos ou tangenciais em que se inscrevem as suas relações sociais. Neste momento, parece-me que o que importa ao mirandês é o efeito de pedra no lago que a utilização da língua, falada, ensinada e escrita, ultimamente vem provocando.

Para concluir, agradeço ao Senhor Professor Alvarez-Balbuena a atenção que prestou à Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa, contribuindo desde logo para o seu melhoramento. Agradeço também esta boa oportunidade de reflexão, em que se deu conta de erros, se reconheceram falhas, se apontaram aspectos melhoráveis e se defenderam, melhor ou pior, alguns pontos de vistas divergentes.

Estou confiante em que, de onda em onda, os círculos de comunicação que em tantos outros planos já se cruzam entre Miranda, Leão e Astúrias (e Portugal, naturalmente) irão provocando a revivescência desta água.

Manuela Barros Ferreira

Outubro de 2003







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[1] A vila de Sendim possui o dialecto mirandês mais diferenciado de toda a zona.



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